quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Vai ficar tudo bem

Ela chegou bem pertinho de mim e disse:
- Vai ficar tudo bem!
Eu arrepiei os cabelinhos da nuca. A voz dela tinha esse poder sobre mim.
Sempre que ela chegava era como se tudo ficasse mais iluminado. Ela não parava de sorrir. Desde os tempos da escola, as meninas viviam implicando, diziam que ninguém podia ser tão feliz assim, elas se dividiam entre as que achavam que ela tinha ficado louca e as que a agrediam dizendo que ela não passava de uma sonsa. Mas ela não levava a mal, até que nos últimos anos do ensino médio a turma inteira passou a se gostar e foi uma baita festa de formatura, abraços e promessas de nunca deixar de se falar. Ela nunca se prendeu a isso, sempre dizia que o que valia era o momento e que nem mesmo as promessas quebradas enfraqueceriam o sentimento daqueles instantes. Era sempre uma resposta na ponta da língua.
A primeira vez que a gente se beijou foi debaixo da rampa da escola que dava acesso ao refeitório. Foi do nada, num minuto a gente estava correndo e no outro ela me beijou.
Nossa amizade era tão forte que mesmo todo mundo colocando pilha, eu nunca flertava com ela, aquele jeito inocente me fazia pensar que era melhor manter uma amizade sincera do que um romance que sempre acaba mal. Mas no segundo em que ela me beijou eu tive a certeza de que aquele medo não era de verdade. Ela era a mulher da minha vida e esse sentimento era real. Eu era um garoto de dezessete anos levando flores na formatura e pedindo a mão dela em casamento. Ela disse que sim e senti que eu poderia vencer tudo com ela.
Passaram-se quase sete anos antes da gente se casar para valer, juntamos cada centavo, ficando semanas sem sair de casa, todo o foco era ter a nossa casa e um casamento lindo. Quando revejo as fotos do casamento, ainda consigo sentir o orgulho que ficamos um do outro nessa fase da nossa vida. Nós chegávamos ao limite do nervosismo com os preparativos, mas no final de cada etapa saíamos mais fortes e maduros. Éramos aquele casal que todo mundo duvida que exista, mas a gente existe.
Ela trabalhava como manicure e babá e ainda ia para o cursinho e eu ralando na fábrica feito um louco até me tornar encarregado do turno da noite. Chegamos a ficar uns dias sem se viver morando na mesma casa. Quando um chegava o outro já estava dormindo.
Meus pais deixaram a gente morar juntos num quarto e sala que o meu avô construiu antes de morrer, era para ser um casarão, mas no meio da construção teve um infarto fulminante e ninguém mais quis tocar a obra, minha mãe relutava em ceder, mas no fim nos deixou continuar o que o pai dela começou. Alguns anos depois a casa estava tão bonita quanto meu avô sonhou.
Nunca tivemos filhos. O tempo foi passando e um dia a gente parou de falar nisso. Não era algo para se entristecer. Não era para gente e lidamos com isso da melhor maneira. Ganhamos uma gatinha e cuidávamos dela como uma filha.
Foram quarenta e nove anos juntos. E no último dia da minha vida, as últimas palavras que eu ouvi foram ela dizendo um amoroso “Vai ficar tudo bem”.
Fechei meus olhos com o amor e a paz da melhor maneira que um homem pode deixar essa vida, ou seja, com a certeza de que tive a melhor vida que poderia viver. O universo inteiro concentrado naquele beijo na nuca que Ela me deu.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A Coroa

     
     

Uma beleza quase imortal, dezenas de pequenas pedras raríssimas e um brilho sobrenatural.

Uma luz fria refletia em mim e eu sentia o peso daquela temperatura.

Eu ainda conseguia me lembrar do frio na barriga quando a puseram pela primeira vez na minha cabeça. Depois disso eu sentia frio o tempo todo. A respiração foi ficando fraca, o cansaço me fazia viver num estado de descanso eterno que visto de longe e no começo poderia ter sido desejado por muitos.

Preso dentro do meu próprio coração eu me esforçava para sentir novamente aquele calor de outrora. Sorrisos ao brilho do sol e abraços ao banho de lua era tudo o que eu mais precisava para retornar à jornada, minhas esperanças e sonhos novamente rebulindo por todo o meu corpo, mas a minha pesada coroa não me deixava erguer o olhar. O vigor e a alegria que minha família me ajudou a construir estava desmoronando por um fardo que nós queríamos acreditar não termos escolhido, mas sabíamos que nossos desejos haviam escolhido por nós. A opulência da coroa nos trouxe glória e fartura por um instante, mas de alguma forma tudo isso já não fazia o menor sentido para nós.

Todos diziam o quanto ela me pertencia e eu a ela. Uma coroa com esplendor sem tamanho, a cada dia prosperava mais no que parecia ser a sua missão real, sugar-me a essência.

Todo meu espirito esvaído, envaidecido por um pedaço de metal que me impuseram na cabeça. No momento em que eu a aceitei tive a certeza de que alguma coisa estava mudando completamente dentro de mim, um sentimento até então adormecido, mas que claramente sempre estivera lá. Deste momento em diante até o meu tom de voz mudou, minha postura, minhas palavras e minhas atitudes não poupavam nada que se colocasse diante de mim e da minha magnífica coroa.

Entre a tristeza e a loucura uma voz sã ainda sussurrava palavras de coragem e humildade na minha mente. Não sei exatamente de onde vinha essa voz, mas era como um fósforo aceso numa caverna congelada e essa pequena faísca ainda ecoava.

Um esforço sobrecomum se fazia necessário, mas o meu medo de perdê-la e de não saber quem sou sem aquele artefato me fazia relutar, até que numa manhã como se algo novo tivesse acontecido, deixei que crescesse o último fogo que faiscava dentro de mim e lancei minhas enrijecidas mãos na cabeça arrancando fora aquele corpo estranho. Feridas fervilhavam na minha cabeça adoentada, mas meu alívio era tão grande que a primeira coisa que fiz foi dar uma gargalhada bem alta olhando o para céu azulado, depois de tantos anos curvado sobre a vaidade da coroa meus olhos se preencheram daquele azul o quanto pode e de braços abertos recebi o amor dos meus entes queridos. A Chance de cura do corpo era improvável porque ao deixar que falassem por mim, meu reinado foi completamente tomado por abutres que envenenaram minhas palavras e calaram a minha voz. Minha mente e pernas já não sabiam mais o caminho de volta. A gargalhada curou um pouco da minha alma, mas o meu corpo já estava tão comprometido que todos acreditavam que era só uma questão de tempo. E era mesmo, em alguns dias a minha saúde física se agravou tanto aos olhos dos curandeiros do reino que a vontade dos perseguidores se fez valer e então abri as portas do novo caminho para o meu espírito.

Minha família abandou o reinado na mesma manhã em que parti seguindo minhas últimas instruções, certos de que uma coroa pode fazer você perder tudo o que é mais importante, meus sacrifícios e erros então valeram a pena para que todos nós aprendêssemos uma lição e nunca mais permitíssemos que o brilho de um objeto ofuscasse nossa luz interior.

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