quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Deserto




Ela olhou para os lados. Esforçou as vistas, o sol brilhava mais do que o de costume.
Ajeitou-se no banco de areia que estava sentada e esforçou-se mais uma vez para ter certeza de que não era uma miragem. Não era.

Depois de uma infinita caminhada, finalmente, conseguiu encontrar algo verde. Durante dias revezava entre o amarelo do sol e o escuro da noite, mas agora poderia enfim abraçar algo verde. Na verdade, não poderia, era um cacto.

Quando se aproximou o suficiente de sua provável miragem, ajoelhou-se e praguejou a vida mais uma vez.

- Que sorte a minha! Ironizou.

- Uma sede dos infernos, um calor de matar, tudo que eu queria era uma sombra para descansar e uma água fresca para beber e o que encontro é uma planta feia e espinhosa.

Encolheu-se para se encaixar na pouca sombra que fazia e começou a tentar se lembrar de como chegou ali. Não conseguia.

De repente se viu caminhando vagarosamente num deserto sem fim.
Ela sabia que conhecia alguém, mas não se lembrava aonde os deixou.
Algo dentro dela incomodava, sabia que precisava se lembrar o quanto antes ou morreria ainda naquela noite. A fome ruía sua barriga e sua garganta estalava de tão seca.
Levantou num pinote e deu um soco na planta feia. Sua mão ficou coberta de espinhos e sangue, mas também um pouco molhada.

Arregalou os olhos para o brilho do suculento interior daquela planta. Sugou o máximo que pode. Uma faísca de sanidade rodopiou em sua mente e viu um rosto que não tinha nome.
Era um sorriso mais brilhante que o próprio sol, mas não tinha nome. Não se encaixava na sua vida, na sua história.

Bebeu mais uma pouco da planta, quebrou alguns pedaços para conseguir sugar melhor.
Conforme saciava sua sede, outros rostos começaram a aparecer e no meio deles um rosto tinha nome, era uma mulher, sua mãe. Ela não sorria, estava triste e chorando.

Fechou os olhos com mais força como um míope que tenta ver sem óculos e uma cena começou a parecer.
Viu uma briga terrível entre elas, saiu de casa amarrada por homens de branco ensanguentados, ouviu gritos, seus próprios gritos. Olhou seu corpo deitado na maca e caminhou até a casa para ver o que tinha acontecido. Encontrou sua mãe coberta com um saco preto, uma faca caída na cozinha e não teve mais dúvidas. Tudo veio a sua mente como um soco na boca do estômago. Ela havia assassinado sua própria mãe.

Ela não estava num deserto físico, era um deserto mental, um refúgio que encontrou para cuidar de sua própria dor. Internada há mais de dez anos numa clínica psiquiátrica ainda não havia sido curada. Resolveu esquecer tudo e dia após dia fechava os olhos e se imaginava num deserto sem fim, mas seus maus pensamentos ainda estavam sedentos.
Pela primeira vez avistava uma planta em seu deserto. Olhou aquele cacto novamente e viu o desabrochar de uma linda flor em seu topo. Sabia que ainda estava longe de sair da clínica, mas aquela flor fez ressurgir uma chama de esperança que há mais de dez anos havia se apagado.
Algo em sua mente podia mudar e quando isso finalmente acontecesse seu mundo exterior finalmente encontraria a paz.


Ela faleceu naquela mesma noite. Durante todo aquele tempo ela contava a si mesma que não havia feito nada e que a culpa era de sua triste e infeliz infância. Nunca havia se responsabilizado por seus atos. No começo se negava a aceitar a tragédia que tinha criado e quando assumiu começou a colocar a culpa nas circunstâncias e esse círculo vicioso foi crescendo sem parar até que percebeu num devaneio profundo como num último suspiro misericordioso de lucidez que apesar de todas as adversidades do deserto aquele cacto encontrou espaço para crescer e florir. 

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